A ambição, o discurso e a realidade - Produzindo Certo
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A ambição, o discurso e a realidade

A nova regulamentação da União Europeia para importação de commodities traz uma boa intenção, mas está desconectada da realidade da produção agropecuária em outros continentes

Na última terça-feira, dia 24 de maio, o diretor de Operações da Produzindo Certo, Charton Locks, foi a voz do agronegócio brasileiro junto ao Parlamento Europeu. Durante cerca de dez minutos, ele teve a oportunidade de expor aos membros da comissão responsável pela revisão do texto da nova regulamentação de importação de commodities agrícolas pelos países da União Europeia. É tema de fundamental relevância para os brasileiros e estar presente nessa discussão é uma grande responsabilidade.

Nesse curto espaço de tempo, a mensagem que pretendemos passar é que, a despeito da boa intenção de buscar garantir que os europeus importem apenas commodities produzidas em áreas livres de desmatamento, a abordagem escolhida pelos legisladores não deve trazer impacto significativo na redução das taxas de conversão de biomas nativos em áreas de produção agropecuária. Isso porque a proposta em discussão foi formulada com base em ambições desconectadas da realidade do campo e dos produtores. Explicamos aqui o que apresentamos aos parlamentares.

O primeiro ponto apresentado é o de que o texto original em apreciação por aquele Parlamento traz um conjunto de requisitos que elevariam de forma significativa o custo de importação de commodities pela Europa. Isso porque pressupõe a implantação de cadeias logísticas segregadas para os produtos comprados por eles. É algo que exigiria a separação de silos, transporte e portos exclusivos para esse fim, o que é praticamente impossível para países como o Brasil, que vive uma realidade de déficit na capacidade de armazenamento para a sua produção regular.

A proposta europeia considera que não estariam aptas para importação pelas empresas locais commodities oriundas de áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020. No Cerrado brasileiro, isso significaria, por exemplo, uma área equivalente a 28 mil hectares com lavouras de soja – pouco mais de um milésimo dos 20 milhões de hectares plantados com o grão na região. Isso justificaria a criação de uma cadeia segregada?

Outro ponto que seria exigido dos exportadores seria a geolocalização da produção em nível dos talhões, de forma a indicar de forma mais precisa a procedência de determinado lote de commodities. Para chegar a esse ponto, seria necessário um maior investimento em ferramentas de monitoramento por parte dos produtores e traders, já que atualmente esse trabalho é feito no nível de propriedade utilizando o Cadastro Ambiental Rural (CAR).

Tecnicamente as duas exigências poderiam ser atendidas. Mas ainda que fosse criada essa cadeia segregada para atender a Europa e todos os talhões das fazendas do Brasil fossem monitorados, o impacto prático das medidas seria inócuo e não teria poder para frear o desmatamento – um dos principais objetivos declarados dos legisladores para a nova regulamentação.

O comércio de soja brasileira com a Europa ajuda a demonstrar. O Brasil exporta apenas 10% de sua produção para os países da UE. Com base nessas exigências, provavelmente essa exportação seria direcionada a produtores de áreas com baixo risco de desmatamento (como o Sul do país ou mesmo outros países, como os Estados Unidos), deixando de fora da conversa as áreas mais críticas nesse sentido, como no Centro Oeste e no MATOPIBA. Nessas regiões, a probabilidade é de que não houvesse desestímulo ao desmatamento, já que a soja nem é a grande responsável pela ocupação das áreas desmatadas. Em todo o Cerrado brasileiro, por exemplo, apenas 10% da área desmatada foi revertida para lavouras de soja nos últimos sete anos.

Também no mercado de café, a princípio, o impacto seria muito grande. No mesmo encontro – organizado por entidades da indústria europeia como a Fediol (de óleos vegetais), Fefac (de rações), Coceral (de cerais) e ECF (de café) -, foi demonstrado como aumentaria a burocaria (e com ela os custos) para a exportação de um contêiner de café para a Europa. Segundo dados da ECF, um contêiner pode reunir produtos originados em até 2 mil diferentes propriedades. Fazer due dilligence e reunir a documentação exigida de cada uma delas transformaria o processo burocrático em um desafio gigantesco, com pouquíssimo resultado prático.

Colheita de soja no MATOPIBA: regiões inteiras podem ser excluídas

Da exclusão à solução

A oportunidade em debater com o Parlamento Europeu é sempre valiosa, principalmente por podemos verificar que há um alinhamento entre os legisladores, as entidades que representam os compradores de commodities e até mesmo de nós, exportadores, no que se refere a buscar mecanismos que resultem na redução do desmatamento – o Brasil, pela sua enorme cobertura florestal, é evidentemente um ator central nessa conversa.

O que procuramos demonstrar aos parlamentares é que, ao propor uma revisão mais ampla na regulamentação europeia, não estamos querendo virar as costas para o problema, mas tentar encontrar maneiras de apoiar a solução. Ao invés de uma proposta que resultará por excluir áreas de alto risco do mercado global de commodities – e com elas, milhões de produtores rurais –, é necessário engajamento e inclusão desses produtores para que se reduza o risco de desmatamento nessas áreas ao longo do tempo.

Para isso, maior impacto teriam políticas que promovessem a valorização da produção responsável, como o pagamento por serviços ambientais e programas de assistência técnica. Dar a mão ao produtor, ajudá-lo a fazer uma boa gestão dos recursos naturais e criar mecanismos que ofereçam oportunidades de manutenção da vegetação nativa além do percentual já exigido pelo Código Florestal. Afinal, todos os setores da economia giram em torno de motivações financeiras, com o agro não é diferente. Se ele tem uma vantagem econômica ao produzir em uma nova área em sua propriedade, só outra vantagem econômica da mesma magnitude conseguirá convencê-lo do contrário.

Já dispomos de sistemas capazes de dar transparência para a produção brasileira. Precisamos garantir que esses sistemas sejam abastecidos com informações confiáveis. Isso se faz com o produtor engajado, através de redes de apoio e verificação das fazendas.

Impacto real

A distância entre a boa intenção, belos discursos e os reais impactos de longo prazo é uma preocupação que cresce à medida em que autoridades e empresas tentam responder com ações às demandas da sociedade por mercados mais justos, transparentes e comprometidos com questões socioambientais. Com a onda ESG em ascensão também entre investidores, o universo corporativo rapidamente incorporou conceitos e programas que prometiam transformações profundas em ambientes de produção e negócios.

Um dos impulsionadores dessa onda foi Larry Fink, CEO da Black Rock, maior gestora de recursos do mundo, com mais de US$ 10 trilhões em ativos sob sua responsabilidade. Nos últimos anos, ele orientou seus fundos a pressionarem as empresas em que investem a reforçarem suas políticas relacionadas a questões climáticas, desmatamento, água, biodiversidade e direitos humanos e a retirarem recursos daquelas que não introduzissem diretrizes claras de ESG. Com o peso da fortuna que administra, ele acabou influenciando outros gestores e milhares de companhias ao redor do mundo

Recentemente, porém, um documento publicado pela Black Rock indicou uma freada de arrumação na posição de Flink. A companhia indicou que passará a apoiar menos projetos relacionados a questões climáticas nas assembleias de acionistas em que participar. A justificativa é de que algumas dessas propostas teriam mais relação com ativismo do que com a geração de valor no longo prazo para os investidores.

O novo posicionamento dividiu opinião entre os especialistas em ESG, mas pelo menos já trouxe um resultado positivo: provocar uma reflexão sobre a importância de se buscar efetividade nos investimentos em ações socioambientais, e não apenas a repercussão junto ao público e aos acionistas. Assim como trouxe conscientização e compromissos reais, a onda ESG carregou em sua espuma a oportunidade para que empresas e executivos mascarassem informações e resultados para parecerem mais “sustentáveis” e, assim, atraírem visibilidade e recursos – manobras que foram batizadas de greenwashing.

Uma pesquisa anual realizada pela Oxford-GlobeScan Corporate Affairs Initiative  com mais de 200 profissionais de 23 países mostra que eles têm demonstrado muita preocupação com esse assunto. Mais de 50% dos entrevistados responderam ter muita ou alguma preocupação com o risco de suas organizações serem acusadas de greenwashing. Este número é maior na Europa (66%), Ásia/Pacífico (57%) e América Latina (53%). E mais baixo na América do Norte (43%) e na África (30%). A pesquisa deve ser publicada na íntegra em junho, mas dados antecipados pelo diretor da GlobeScan no Brasil, Álvaro Almeida, mostram que as principais razões para esse temor são: falta de métricas e evidências (33%); falta de coordenação entre os compromissos e a implementação (27%); e performance insuficiente em temas ambientais e sociais (23%). “Fica clara a preocupação dos profissionais das empresas em demonstrar a evolução de seus resultados no alcance dos objetivos e compromissos assumidos e responder de forma apropriada ao escrutínio dos especialistas em ESG. Esta tensão por comprovar resultados está no ar”, escreveu Almeida em seu perfil no LinkedIn.

No mercado financeiro, a expressão investimentos de impacto também ganhou popularidade ao definir os recursos aplicados em negócios ou mercados com a intenção de causar um efeito social ou ambiental positivo, ao mesmo tempo em que gera um retorno financeiro ao investidor. O conceito é novo e também merece algumas reflexões: os impactos prometidos têm sido buscados com o mesmo empenho do que os resultados financeiros? Os investidores estão dispostos a abrir mão de parte desse resultado em nome da valorização dos ganhos sociais e ambientais?

É tão curioso olhar para as operações financeiras agrícolas e perceber que as áreas com florestas nativas, que guardam a biodiversidade, estocam carbono, preservam nascentes de água, etc., não são bem vistas quando oferecidas em garantia. O agronegócio, que é campo fértil para esses investimentos, gostaria de participar também dessa conversa e desses ganhos.

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