A nova onda de valorização das terras agrícolas - Produzindo Certo
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A nova onda de valorização das terras agrícolas

Durante décadas, o mercado de terras rurais ficou fora do radar dos investidores urbanos. Não que fosse pequeno – em um país como o Brasil, com a sua imensidão agropecuária, tudo que envolve o campo é potencialmente grande.

O que acontece é que ele não era suficientemente “sexy”, não estava na pauta dos titans do mercado financeiro e não carregava promessas de enriquecimento rápido. Não se perdia dinheiro com terra – lembremo-nos sempre do ditado “quem tem terra não erra”, tão popular quanto verdadeiro –, mas também não se fazia fortunas instantâneas com ela.

Há, no entanto, um novo olhar, mais atento, ao que acontece depois que acaba o asfalto e onde começa o meio rural. A riqueza imediata ainda não está lá, mas a percepção (real, diga-se) de que imóveis rurais serão, nos próximos anos, ativos ainda mais estratégicos e valiosos transcendeu as atividades agropecuárias, fazendo com que os holofotes do grande capital passassem a iluminar o campo.

Ainda não erra quem tem terra. E acertam ainda mais aqueles cujo pedaço de chão incorpore acesso a água e energia limpa renovável e confiável. Na era da inteligência artificial, inteligente é investir em ativos naturais.

O fenômeno é global e sustentado por vários pilares. O primeiro é mais óbvio é o do controle da produção de alimentos à medida em que se encorpam no horizonte as nuvens da insegurança alimentar.

Em décadas passadas, o avanço tecnológico permitiu transformar terras antes de pouco valor pela baixa fertilidade em áreas produtivas e disputadas – o melhor exemplo nesse sentido está no Cerrado brasileiro, hoje um dos maiores celeiros na produção de grãos para o mundo.

Esse pilar ganhou mais corpo em vários lugares do mundo com o interesse de grupos e até países em adquirir e manter acessíveis as fontes primárias de origem dos alimentos, prevenindo-se contra uma eventual disrupção dos sistemas logísticos e de fornecimento globais, um “legado” da pandemia do coronavírus.

Assim, ao longo da primeira metade dessa década, a percepção de valor dos imóveis rurais extrapolou as fronteiras do agronegócio, acelerando a sua valorização nos principais países produtores.

Instituições como o CAIA, organização voltada para investimentos alternativos que reúne mais de 13 mil membros globalmente, e o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) revelaram em estudos que as terras agrícolas apresentaram, recentemente, valorizações importantes.

Segundo o USDA, em relatório divulgado este ano, os preços das propriedades rurais americanas tiveram variação positiva entre 5% e 12% nos 18 meses entre janeiro de 2023 e junho de 2024.

Olhando mais em longo prazo, desde 2010, o departamento verificou que o valor médio do acre no país subiu de US$ 2,15 mil para US$ 4,17 mil, quase dobrando em menos de uma década e meia.

Já a análise do CAIA destaca que as valorizações são mais expressivas em países com segurança hídrica e energética, trazendo as áreas agrícolas – e a questão da crise do abastecimento de água – ao centro dos investimentos globais.

Água: o ativo invisível por trás da terra

Com distribuição mais desigual e valor menos precificado, a água talvez seja a variável com maior potencial de influenciar o futuro do mercado imobiliário rural.

A busca por propriedades autossuficientes ou até mesmo com excedente no balanço hídrico tornou-se mandatória não apenas para quem cultiva ou cria animais nas propriedades, mas para uma série de indústrias altamente consumidoras desse recurso.

Um relatório da Global Commission on the Economics of Water (2024) alerta que a crise hídrica pode gerar perda de até 8% do PIB global até 2050.

A água já é chamada de “o novo petróleo” e a tendência de que isso se acentue nos próximos anos vem menos do campo, onde a introdução de boas práticas contribui no manejo hídrico das propriedades, e mais de segmentos não comumente relacionados ao consumo de água.

Não por acaso, entre os maiores investidores de terras no mundo atualmente estão titãs da tecnologia, como o fundador da Microsoft, Bill Gates, e das finanças, como Michael Burry, da Scion Asset manament.

Atuando através de suas holdings de investimentos, como a Cascade Investment  e a Bill & Melinda Gates Investments), Gates já foi apontado como o maior proprietário privado de terras agrícolas nos EUA, com cerca de 242 000 acres (cerca de 98 000 ha) em 19 estados americanos.

No caso de Burry, ele tem mantido uma rotina de investimentos em fazendas irrigadas, buscando ativos tangíveis e proteção contra inflação.

IA como nova força de pressão sobre recursos naturais

O avanço da inteligência artificial, por exemplo, trouxe uma demanda inesperada pelo recurso, altamente consumido no resfriamento de data centers cada vez maiores e mais potentes.

Um estudo da Universidade da Califórnia em Riverside revela que para processar de 5 a 50 operações (ou prompts), o ChatGPT pode consumir até 500 ml. Com isso, datacenters podem usar dezenas de milhões de litros por ano.

A proliferação dessas estruturas tem provocado, em algumas regiões, disputas entre as companhias a que pertencem – em geral grandes empresas de tecnologia – e populações locais pelo uso da água.

Em abril passado, o jornal britânico The Guardian publicou uma investigação que mostra que Big Techs como Amazon, Google e Microsoft encaram esse tipo de problema com a construção de seus datacenters em áreas de escassez hídrica.

Diante de uma demanda crescente por processamento, elas têm buscado migrar futuros investimentos para regiões com oferta confiante de água e energia – e isso coloca o Brasil em seu mapa.

Assim, empresas estão buscando instalar datacenters próximos a fontes de energia renovável e água confiável — o que inclui terras no Brasil. O mesmo The Guardian havia publicado em março um relatório mostrando que há 46 deles sendo instalados no País, aumentando a pressão sobre o fornecimento de energia e água em áreas vulneráveis.

Brasil como hotspot de recursos — e conflitos

Para a imprensa internacional, a vasta disponibilidade hídrica e o perfil de sua matriz energética majoritariamente renovável fazem o Brasil ser visto como destino ideal para investimentos em IA.

O efeito colateral dessa sede das Big Techs seriam eventuais conflitos, que poderiam se intensificar nos próximos anos, especialmente em regiões produtivas do Cerrado e Centro-Oeste.

Quem restaura, prospera

Para acomodar desenvolvimento e as necessidades de abastecimento das populações e dos negócios rurais, a equação aponta para o caminho da restauração e do uso racional desses recursos.

Se a demanda por terras e água cresce, é necessário “produzi-las” e não tratá-las como insumos infinitos. Programas de restauração de áreas degradadas ou de preservação de bacias hidrográficas podem tornar novamente valiosas e úteis áreas que, pela exploração extensiva durante anos, tornaram-se praticamente estéreis.

As oportunidades estão na mesa e as contas dos investimentos necessários para torna-las realidade apontam para valores proporcionais ao desafio que se impõem.

Um estudo divulgado na semana passada pelo banco Itaú BBA, mapeou 28 milhões de hectares de pastagens com algum tipo de degradação em diferentes regiões do Brasil e estimou que, para recuperá-los, tornando-os aptos para a agropecuária sustentável e produtiva, seriam necessários cerca de R$ 500 bilhões.

O retorno, entretanto, pode compensar – e muito. Se convertidas devidamente, essas áreas poderiam ampliar em 52% a produção nacional de grãos, além de evitar a emissão de 3,5 bilhões de toneladas de CO2.

E, como quem investe em terra não erra, gerar R$ 904 bilhões apenas em valorização fundiária.

Mas é claro que essa conta não é tão simples assim. O valor da terra está intrinsecamente atrelado não só à sua produtividade, mas também à sua condição de ser um recurso limitado.

No caso do Brasil, essa escassez é, em boa parte, construída. Isso porque temos uma legislação ambiental única no mundo, que obriga todo proprietário rural a manter entre 20% e 80% da sua área preservada.

Na prática, isso significa que a oferta de terras produtivas no país é estruturalmente limitada. E quem segura essa conta são justamente os produtores, que carregam nas costas a responsabilidade de conservar enquanto seguem produzindo.

Essa escassez fictícia, somada às dinâmicas de mercado, ajuda, sim, a sustentar o valor da terra. Se toda a área de uma propriedade pudesse ser convertida em produção, o preço seria outro.

Em um mundo cada vez mais digital, paradoxalmente, o futuro segue ancorado nos ativos mais tangíveis e ancestrais: terra e água.