Poucos dias à frente da gestão da fazenda bastaram para a produtora se convencer de que a atividade deveria ser tocada de forma diferente. E de que essa informação tinha de ser compartilhada
A Agropecuária Orvalho das Flores, de Aruaguaiana (MT), é uma das poucas fazendas no mundo a ter aberto as porteiras para a norte-americana Temple Grandin, referência global em bem-estar animal. Psicóloga, zootecnista e professora da Universidade de Colorado, Temple revolucionou o manejo do gado de corte – no campo e na indústria – e chegou a ter sua história contada em um filme, lançado em 2010.
A passagem de Temple pelo Centro-Oeste, em 2018, talvez diga mais sobre o lugar em que esteve do que sobre ela mesma. Sua visita foi motivada pelo trabalho de Carmen Perez, a mulher à frente da propriedade, que também precisou ser persistente e resiliente para transformar a rotina em prol do bem-estar do rebanho e das pessoas em torno dele.
Assim como Temple, Carmen não se conformava com tratamento diário dado aos animais e insistiu até que as coisas tomassem outro rumo. Na verdade, ela continua a insistir, só que agora para que as mudanças continuem e sejam aprimoradas, e não apenas em sua fazenda.
Essa história começa ali no início dos anos 2000, quando assumiu a gestão da Orvalho das Flores, em uma decisão inusitada. A propriedade comprada por seu avô na década de 1980, com o intuito de diversificar os negócios (a atividade principal estava no setor sucroenergético), seria colocada à venda pela família, pois ele havia adoecido. Quando um tio se prontificou a continuar o negócio, Carmen não teve dúvidas e também decidiu fincar os pés no campo.
A jovem paulistana de 22 anos apostou na relação que tinha com aquele lugar, onde passou boa parte da infância e da juventude, pois não tinha formação em gestão rural ou experiência com a administração de uma fazenda. Mas foi só começar a ver o manejo que já sabia qual direção iria tomar e qual não queria. Com a divisão da propriedade entre sua mãe e dois tios, foi preciso apartar 13 mil cabeças de gado e marcar a fogo novamente todos os animais. “Aquele fogareiro aceso o tempo todo e os barulhos nos currais me incomodavam demais. Era muito sofrimento, eu saía cansada de lá”, conta a pecuarista.
Bem-estar em primeiro lugar
Embora não soubesse como, Carmen estava certa de que a identificação poderia ser feita de outra forma. Quando questionou a equipe na lida com o rebanho, também ficou incomodada com a resposta: “o animal tem o couro grosso, não tem problema”, diziam. Ela passou a pesquisar tudo o que havia sobre as reações do gado àquela marcação e os resultados mostravam que tinha razão. “Além de toda a questão da dor, há problemas inflamatórios”, comenta.
Era hora de buscar ajuda para de fato reduzir a marcação a fogo. Carmen já havia ouvido falar de Mateus Paranhos, professor da Unesp (Jaboticabal), coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal (ETCO), da própria universidade, e especialista em bem-estar animal. “O convidamos para que desse um curso na fazenda e chamamos os vizinhos. Ele falou de coisas muito básicas, mas que não tínhamos conhecimento”, conta Carmen.
Colocar aquela teoria na prática foi outro desafio. “Achei que as coisas poderiam mudar rapidamente, mas não é assim que acontece”, diz a pecuarista. Foi preciso muita paciência e perseverança. A implementação de novos hábitos, de novas rotinas, dependia também – e principalmente – das pessoas, e foi por aí que começou a surgir um novo cenário. Em 2015, a vontade de reduzir a marcação a fogo ganhou outra dimensão, virou um projeto dentro da fazenda, em parceria com o Professor Paranhos.
Ele mesmo sugeriu que falassem com a Allflex, empresa especializada em identificação animal, para buscaram uma solução. “Os animais tinham oito marcas, e com as mudanças ficaram apenas com a de brucelose”, comenta Carmen. Foi um alívio para o gado é para os tratadores, pois o rebanho passou a ficar mais tranquilo.
“Um animal reativo coloca a equipe em risco, e cada vez que você faz um manejo muito invasivo ele fica ainda mais reativo.” Levando-se em conta que as marcações começam ainda na fase de bezerro, não é surpresa se o bicho ficar estressado em qualquer manejo. “Ao começar a falar sobre isso, ali em 2016, as pessoas nem queriam me escutar. Hoje é bem diferente. Quando me convidaram, no ano passado, para falar a respeito na Expointer [Esteio, RS] foi ótimo, até por ser uma região onde é tão forte a tradição da marca a fogo.”
Pecuária de precisão
O repertório de argumentos de Carmen para defender a pecuária de corte baseada no bem-estar animal, sem marcação a fogo, também aumentou. O avanço nessa jornada trouxe benefícios significativos para a gestão da propriedade e, consequentemente, para a saúde financeira do negócio. “A gente ganha em segurança, agilidade, facilidade de manejo e mais acerto na identificação”, define a produtora. Ela conta que quando iniciou esse trabalho com o professor Paranhos, descobriram uma margem de erro de 18% na identificação do rebanho com marca a fogo e até 15% com brincos. “Como é possível ter uma pecuária de precisão dessa forma?”, questiona.
Hoje, Orvalho das Flores é uma fazenda de cria, com um rebanho que gira em torno de 2.800 a 3.000 cabeças e uma oferta de 1.300 bezerros por safra. A gestão eficiente da identificação desses animais, baseada em soluções tecnológicas, garante os melhores resultados na gestão. E o bem-estar vai muito além de eliminar a marcação a fogo, está na relação direta com o gado.
Agora, quando são contidos para o manejo, os bezerros recebem uma sessão de massagem, e não mais uma queimadura. Essa condição também se reflete nos animais adultos, tanto que é possível ver Carmen acariciando suas vacas no campo com o bezerro ao pé.
Outra conquista da pecuarista, na esteira de toda esse cuidado para produzir certo, garantindo a qualidade de vida e o bem-estar do rebanho, é o convite para fazer parte da segunda etapa do projetopiloto para a geração de créditos de couro sustentável, iniciativa da Textil Exchange, por meio de seu programa Leather Impact Acceleator (LIA).
A organização global sem fins lucrativos, direcionada a gerar impactos positivos em temas ligados às mudanças climáticas entre as principais empresas têxteis e de moda, decidiu testar o modelo em propriedades da Amazônia e do Cerrado. E a Produzindo Certo é a responsável pela implementação nas fazendas brasileiras.
“Fiquei maravilhada com a ideia e muito feliz por participar”, comemora Carmen. Entre os diversos fatores dessa satisfação está a sintonia existente entre a proposta do projeto da Textil Exchange e tudo o que já vem sendo realizado na fazenda. “Quando ouvi sobre o projeto fiquei muito feliz, porque era tudo o que eu vinha trabalhando e buscando.”
Liderança feminina
Desde que a transformação do manejo de sua fazenda começou a gerar resultados, Carmen também teve a certeza da importância de compartilhar o que estava acontecendo. E ao dividir essas informações com outras fazendas, naturalmente passou a ampliar essa ação por outras cidades, outros estados, outras regiões e para o mundo. Aí está outro ponto em comum entre a pecuarista de Mato Grosso e Temple Grandin: essa história virou filme.
No ano passado foi lançado o documentário Quando ouvi a voz da terra, produzido pela própria Carmen, em companhia da jornalista Flavia Tonin e do diretor Nando Dias Gomes. O filme, que está disponível no YouTube, mostra a trajetória da pecuarista e o trabalho de outras fazendas que se tornaram referência em bem-estar animal.
A estreia no segmento do audiovisual reforçou mais um papel que Carmen foi conquistando e assumindo ao longo de mais de 20 anos no agronegócio: a posição de liderança feminina no setor. “É um grande privilégio ser mulher e exercer esse papel dentro da cadeia pecuária”, diz. “A mulher tem habilidades diferentes das que o homem tem e que o setor precisa.” Uma delas, segundo Carmen, é a sensibilidade que antes era vista como preocupação e que na verdade é algo muito positivo. Dar um novo significado para esse diferencial muda até o comportamento, para melhor, permitindo que as mulheres se sintam mais seguras e confiantes.
Aos 44 anos, casada e com duas filhas, Carmen é prova de que o lugar da mulher é de fato onde ela quiser. E do jeito que ela achar melhor. Até hoje, o traje da pecuarista para a lida na fazenda é o que mais condiz com a atividade, em sua opinião: jeans, camisa, botas e chapéu. Mas diferentemente do início, já não é um tabu usar a maquiagem que sua vaidade desejar. Os resultados à frente da fazenda e a maneira como trata as equipes solidificam a relação de respeito. Isso ainda não a impede de, como grande parte das mulheres, ter de se preocupar com o comportamento masculino. Por isso, a mensagem que ela procura passar às outras pecuaristas, e que certamente cabe para mulheres empreendedoras de qualquer segmento, é que prosperem, sempre.